No Brasil, 94% das mulheres já sofreram assédio verbal e pelo menos 77% delas vivenciaram algum tipo de assédio físico*. Se expandirmos para o mundo, uma em cada três mulheres já sofreu violência física ou sexual de acordo com a ONU. O fato é que a violência contra a mulher ainda é uma realidade gritante em nosso país.
Como podemos mudar essa realidade? Entrevistamos Juliana de Faria, professora convidada do Mobilize! e criadora do Think Olga, ONG que luta pelo empoderamento feminino por meio da informação. Ao longo dos anos, Juliana desenvolveu diversas campanhas como Chega de Fiu-Fiu e #meuprimeiroassedio, campanhas essas que têm mobilizado milhares de pessoas e provocado uma transformação na sociedade sobre a questão do abuso, além de ter criado um espaço necessário para que inúmeras mulheres pudessem compartilhar suas histórias. Confira a entrevista na íntegra!
1) Conte um pouco sobre a sua história, background, o que você já fez na vida, inquietações. Pode também contar alguma curiosidade sua para descontrair… 🙂
Contando um pouco sobre mim: sou formada em Jornalismo pela PUC e como amo viajar, tive a oportunidade de morar em alguns lugares no mundo como Salamanca na Espanha, Londres e Berlim. Amo também comer, adoro gatos, assistir a seriados e me considero uma workaholic assumida. Acho que essas são algumas das minhas características! Fiz especialização em comunicação para o público feminino e foi nessa área que percebi como a comunicação era feita com muitos estereótipos e de uma forma muito mais rasa do que eu, como leitora e mulher, gostaria de receber essa informação. Foi por isso que surgiu o Think Olga. Dessa inquietação que surgiu todo o projeto e todas nossas ações.
Outra curiosidade sobre mim e que se relaciona com um dos novos projetos do Think Olga, é minha história com o esporte. Fui muito esportista na minha adolescência, a ponto de participar de campeonatos e ganhar diversas medalhas e troféus na natação e no basquete. Conto isso, porque acabamos de lançar uma campanha chamada Olga Esporte Clube, com o objetivo de trazer o empoderamento feminino por meio do esporte e romper com noção do esporte no universo feminino ser apenas ligado a questão corporal/estética, de emagrecimento. Queremos mostrar para as mulheres que o esporte pode ser praticado pela diversão, pela competição, pela inteligência emocional, para conhecer novas pessoas.
2) Conta para gente como veio a ideia de fundar o Think Olga. O que te motivou? E o que vocês fizeram para ir ganhando espaço e mobilizando as pessoas em torno da causa feminista?
A Olga nasceu exatamente do que mencionei na pergunta anterior, sou comunicadora, sou jornalista e sentia que não havia espaço para trabalhar e comunicar sobre questões que eram importantes para mim como mulher, já que via uma comunicação baseada no mesmo, em estereótipos, em superficialidades.
Como sempre falo, não tem problema nenhum falar sobre a cor do batom, tendências de moda, pelo contrário, são indústrias muitos interessantes, têm muito a dizer, afinal falam muito sobre quem somos, como é a nossa sociedade. Particularmente, acho a indústria de moda muito interessante. O problema é quando nos focamos só nisso, só em padrões, em regras sociais, isso sim pode ser muito nocivo. Nesse sentido, o Think Olga nasceu para ser um projeto de geração de conteúdo feito para mulheres e por mulheres, quebrando estereótipos na comunicação e trazendo artigos e informações que vão além, saiam da superfície. Queremos empoderar as mulheres por meio da informação, afinal, informação é poder.
3) As campanhas Chega de fiu fiu e Primeiro Assédio conseguiram mobilizar milhares de pessoas. A gente teve acesso a alguns dados do Google Trends, e por lá consta que foram contabilizados 88.847 postagens com a tag #primeiroassédio por 35.266 usuários. Isso é um resultado bastante expressivo, né? Você acha que o sucesso dessas campanhas se deve a que? Qual foi a estratégia que vocês utilizaram?
Nossa proposta é falar sobre assuntos que sejam entendidos como tabus, não falados pelas grandes mídias ou por nós mesmos na sociedade. Como exemplo, temos a questão do assédio sexual, que sempre foi tratado como mimimi, besteira ou até mesmo elogio, que acabava sendo jogado para debaixo do tapete. Queremos levantar esse tapete. Vejo que o sucesso das campanhas veio da coragem, porque a coragem viraliza, basta que uma pessoa tenha de falar que o rei está nu, para que outras pessoas falem também. Foi isso que aconteceu com a Chega de Fiufiu e o #Primeiroassédio. E também graças à internet, porque ela me conectou com muitas mulheres, as quais não teria contato na vida offline, além de fazer com que a minha ideia chegasse mais longe, mais fácil e rapidamente.
Para contextualizar, a campanha Primeiro Assédio, nasceu de uma urgência, do caso de uma menina de 12 anos que durante a participação no Master Chef Júnior foi alvo de tweets totalmente inapropriados e de cunho sexual. E para nós da Olga, é como surgem as campanhas: identificamos uma urgência, um assunto que esteja gritando para ser falado. Na essência, esse é o papel do jornalismo: perceber uma situação e trazer a reflexão e uma ação sobre o tema. No nosso caso, o tema central são as mulheres.
Tamanha era essa urgência que a campanha ficou no top 10 do Google em 2015, um ranking dos 10 assuntos mais pesquisados no buscador, com mais 11 milhões de pesquisas. Além disso, vimos o grande impacto que nossas ações tiveram na vida das pessoas, especialmente mulheres. Muitas delas nos procuraram para falar do primeiro assédio. Ouvimos de psicólogos que o tema do primeiro assédio acabou sendo muito recorrente nas sessões. Mulheres que lembraram de abusos que tinham sofrido, mas que estavam escondidos. É incrível ver mulheres trazendo à tona a questão do assédio e compartilhando suas histórias. É um grande impacto!
Outro exemplo que gostaria de trazer foi de quando criamos uma campanha de mobilização há uns 3 anos chamada 100 vezes Cláudia. Cláudia, uma mulher negra, moradora da periferia, além de ter sido morta a tiro por policiais, foi jogada no porta-malas de um carro e ainda teve o corpo arrastado por vários metros. O objetivo da campanha era exatamente humanizar a Cláudia, porque além do fato em si ser horrível, os jornais ainda a chamavam de “mulher arrastada”. Mas Cláudia era ser humano, uma mulher e tinha história e, por isso, pedimos às pessoas que mandassem ilustrações da Cláudia.
Nosso principal objetivo é fazer com que as pessoas participem. Não estamos aqui só para “jogar na cara” o assunto, queremos provocar a discussão, que as pessoas dividam suas histórias, colaborem, compartilhem. Nesse sentido, nossa estratégia é sermos levadas pelo coração e identificar um tema que esteja “pegando fogo”, expor nosso ponto de vista e trazer o ponto de vista de outras pessoas.
4) As questões ligadas à mulher voltaram a ganhar muita força nos últimos anos. Qual foi a contribuição do Think Olga nesse movimento?
Vejo esse fenômeno com muita alegria, porque para mim também é um assunto sobre o qual por muito tempo me calei, por medo, por vergonha, por me sentir culpabilizada. Com o Think Olga, queria contribuir nesse sentido e propor um caminho para que pudéssemos falar sobre esses assuntos de maneira clara e objetiva, para que nós pudéssemos achar soluções. Mas a gente só consegue achar soluções para um problema quando admitimos ter um problema. E é isso que estamos buscando fazer.
5) Qual a importância, para você, das mobilizações sociais nos dias de hoje?
Enxergo o momento atual como um grande momento para as minorias, a grande mídia sempre foi feita para um tipo muito específico de pessoa: homem, branco, heterossexual, cis, classe média. Não que isso esteja errado, mas sim a falta de diversidade na hora de se fazer uma comunicação. Nesse sentido, a internet permitiu que essas minorias que não tinham espaço nem voz, possibilidade de fala, pudessem criar por conta própria o seu conteúdo.
Hoje, podemos ler pessoas que jamais leríamos nos meios de comunicação tradicionais e temos a acesso a materiais que jamais teríamos em rádios, jornais e televisão. A própria Olga nasceu disso: nasceu por eu não conseguir fazer matérias que queria nas revistas femininas nas quais trabalhei. Além disso, precisei gastar pouquíssimo dinheiro para produzir meu próprio conteúdo. E isso é maravilhoso, a pluralidade da informação.
6) No curso Mobilize! Estratégias para Transformação, iremos trabalhar com os alunos para que eles também tenham as ferramentas necessárias para engajar multidões nos seus projetos. Se você pudesse dar uma dica a eles, qual seria?
Acho que posso dar duas dicas. A primeira, mais subjetiva, é para ser honesto(a) com quem você é. Sei que pode parecer clichê, mas o que quero dizer é: não crie uma persona. Leve o que você acredita para o seu trabalho, fazendo as coisas com coração. Porque quando você faz com o coração, você tem certeza que o que está fazendo é verdadeiramente certo e é muito mais difícil alguém “quebrar as suas pernas”, porque você acredita naquilo.
A segunda dica que posso dar é a colaboração. Quase todas as ações que fazemos no Think Olga é crowd sourced – quando se solicita a contribuição de um grande grupo de pessoas para criar serviços, ideias ou conteúdo. Isso é muito importante, porque você não só traz mais pessoas para o seu projeto, como também traz outros pontos de vista. A diversidade é essencial e faz com que estouremos nossa bolha de achar que só o nosso caminho é o certo, quando, de fato, precisamos de outros olhares para atingir nossos objetivos.
Inspiradora essa história, não é mesmo? Com autenticidade e usando o poder da colaboração, Juliana mostra que é possível criar campanhas que atinjam milhares de pessoas, trazendo à tona temas considerados tabus, como a violência contra a mulher, e fazer com que as pessoas debatam assuntos considerados polêmicos.
Se você se identificou com a história de mobilização da Juliana e quer engajar multidões em torno da sua causa, aproveite a oportunidade para participar da próxima turma do Mobilize! Um programa de estratégias para mobilização onde você irá aprender como desenvolver um processo simples e efetivo de planejamento estratégico para envolver pessoas em torno dos seus projetos. Saiba mais aqui.
*Segundo levantamento realizado pela Agência Énois – Inteligência Jovem, em parceria com os institutos Vladimir Herzog e Patrícia Galvão.
Juliana de Daria é fundadora do OLGA, um think tank dedicado a debater a feminilidade. Também está à frente da campanha Chega de Fiu Fiu, cujo objetivo é combater o assédio sexual em locais públicos. Formada pela PUC-SP, especializou em moda na Central Saint Martins, em Londres, e trabalhou na revista ELLE Brasil. Mas descobriu que gostava mais de falar sobre a mulher que veste a roupa do que sobre a roupa que veste a mulher.